ARABESQUE

ARABESQUE
Em passos de arabesque escrevo

2.6.12


Um comentário:

  1. TAMBÉM VOAM ANJOS NO SHOPPING



    Alguns dias, quando acordo, sinto muito medo. É quando os vejo, frágeis e inocentes, dormindo em colchões no chão da sala do pequeno barraco.
    Pavor de me acontecer algo que os deixe sozinhos, abandonados à sua sorte. Sobe-me à garganta, sufocando. Preparo a comida, desanimada. Tão pouca para a fome das crianças. Alimento-me de quase nada para lhes deixar um pouco mais.
    Da janela vejo o imenso Shopping, perto e inalcançável. Local de compras onde nem me é permitido entrar com minhas roupas desbotadas por anos de lavagens.
    Vou sair para trabalhar. Lavar e passar as roupas da D. Marta no grande apartamento onde mora com a cozinheira Zefa. Sei que só me aceitou porque cobrei muito pouco pelo trabalho, mas preciso trabalhar e é difícil conseguir emprego. É dinheiro pouco, mas me garante manter meus filhos alimentados. Agora me considera de confiança mas antes me seguia o tempo inteiro.
    As crianças ficarão sozinhas aos cuidados de Lili, 9 anos, a mais velha. O pai, que me violentou aos 15 anos, sumiu no mundo sem ver a filha. Outros passaram, me alimentando de esperança e me largaram grávida. Não acredito mais em ninguém.



    A menina entrou pela porta lateral da Praça da Alimentação do Shopping. Sentada à primeira mesa com amigos, almoçávamos.
    Vestia uma roupinha simples mas bem cuidada. Olhou em torno com olhar tristonho, olhar de procura, olhar de quem espia por trás de um véu, tão cedo fragmentada pela vida. Examinava as pessoas se alimentando, alheias à sua presença. Indecisa, temerosa, sozinha com seu medo.



    Aquele é o guarda que me olhou na última vez com olhar estranho e chamou para dizer que se eu fosse com ele para trás do Shopping e deixasse que ele me beijasse e brincasse comigo ia me dar dinheiro e comida, mas eu não quis e corri de volta pra casa. Agora me olhou mas me deixou passar. Sinto a fome gemendo no meu estômago. A mãe recomenda não pedir nada a estranhos, ficar em casa quietinha e quando voltar traz comida pra gente. Às vezes Zefa lhe dá os restos da comida da patroa, aí ela chega feliz. Outras vezes não dá e ela volta triste, com uns dois pães que divide com a gente. Falou que o salário só chega no fim do mês e logo acaba.
    Vou tentar conseguir umas moedas para comprar pão e dividir com meus irmãos mas não gosto de mesa com crianças. Elas parecem ter nojo de mim. Alguns adultos também. Me mandam embora falando – Tem não.



    A menina se aproximou da nossa mesa com arzinho tímido e falou a meu amigo que a olhou e colocou a mão nos bolsos, procurando moedas, enquanto ela sentou na cadeira desocupada da mesa vizinha, o queixo nas mãos e o olhar mais triste que já presenciei numa criança.
    Na cadeira ao lado havia colocado o embrulho com a torta que comprara para jantar à noite, em casa. Olhei a torta, olhei a menina, e lhe fiz um gesto para se aproximar. Então lhe entreguei dizendo – Leve para você almoçar.
    Seu rosto se iluminou com um sorriso, olhos brilhando, tomando o pacote nas mãos.
    Meu amigo me olhou admirado. Achara algumas moedas no bolso e tentou lhe entregar, mas ela recusou balançando a cabeça e mostrando o embrulho, agradecida.
    Em seguida saiu correndo porta à fora, a torta nas mãos.
    Na mesa do outro lado, uma garotinha, quase um bebê, me saudou com acenos e grande sorriso.


    ©Jade Dantas

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